Você sabe onde me encontrar

Wheat field with crows (Vincent, 1890)


Mas não demora. A aguaceira é forte e está debulhando a paisagem, arrancando tudo pelas raízes. Escondo-me enquanto posso, mas a visão fica mais turva a cada ausência, presenças não correspondidas. Inclusive, deparei-me ontem com estilhaços sob meus pés. O retrato que estampava seus olhos curvados sobre mim (sim, aquele! que, de tão assustadoramente profundo, guiava meu próprio olhar para as entranhas do meu ser) despencou da parede; o vidro se quebrou. Engraçado, deve fazer poucos dias, se não poucas horas, mas a imagem que sobrou desse retrato já se esmaece ante o vento úmido que escorre pelas frestas da porta de entrada. Esta, que lhe espera cerrada - para evitar a ventania - porém destrancada - para que você entre logo e não se molhe lá fora. Por isso eu lhe peço, não demore. Eu estou aqui, eu não vou sair daqui. As estruturas, no entanto, estão enfraquecidas e eu não conseguirei segurar tudo sozinha por muito tempo. Já falta energia; posso acender uma vela? Só para me aquecer um pouco o respirar. Estou planejando um banquete, com tudo aquilo que esse tempo longínquo me privou de saborear. Os estrondos lá fora chegam a assustar quando iluminam todo o entorno, fazendo-me enxergar todo o pó que vem se acumulando. Mas estou planejando um banquete para mim e para você, para nós. Vem com cuidado, eu sei que o tempo lá fora está ruim e a estrada não é nítida. Passei por esse mesmo caminho antes de chegar aqui, mas aqui estou, aqui fiquei. Vem, eu lhe espero pro jantar! Mas não demore, por favor; senão vai esfriar.

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